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terça-feira, 30 de outubro de 2012

Em tempo de máscaras…

Aproxima-se, tal veloz cruzeiro, uma festividade com raízes anglo-saxónicas, embora atualmente esteja totalmente globalizada, sim... refiro-me ao Halloween, ou Dia das Bruxas. Com origens pagãs e desviada do sentido que lhe foi conferido resta-nos, hoje,  a diversão mantendo-se o uso de disfarces e máscaras.
 
De facto, o Homem sempre se fascinou pelo disfarce, pela possibilidade de vestir uma outra pele que não a sua e... já alguém disse “todos vêem aquilo que pareces, poucos sentem o que és”.
 
Importado da (sua) poltrona analítica, Jung introduziu um conceito resultante do arquétipo persona (a máscara ou o papel usados pelo ator-indivíduo) referindo-se aos nossos comportamentos escrutinados ao nível dos papéis sociais, a forma e o conteúdo que são apresentados ao mundo. São apenas ligeiras faces do nosso Self. Veja-se que não devem ser entendidas de forma pejorativa, pois representam um filtro adaptativo e de inserção, importante para o nosso próprio desenvolvimento. No entanto, não devem ser confundidas com o Self e (já a Gestalt dizia) “ o todo é maior do que a soma das partes”. 
 
De facto, este conceito (máscara) remonta a tempos recônditos, passando pelas origens do teatro e da tragédia grega – da manifestação emocional nos palcos dionísicos, às manifestações de homenagem fúnebre dos egípcios, aos rituais xamânicos  - a máscara assume-se como o passaporte para o imaginário, para o simbolismo. Desde os tempos da Idade Média que os bailes eram assegurados pelas vestes e máscaras festivas, pelo que todos se permitiriam à doce face do anonimato.
 
Simbolismo, anonimato… de certa forma, a máscara pode ser encarada como um molde de transformação, sendo que o que pode ser experienciado através de um papel poderá mais tarde ser integrado na própria identidade, e… não será isso viver?
 
Se a vida é um palco e nós os atores, certamente, usar-se-ão diferentes máscaras consoante os papéis. O desafio consiste em não ficar preso na envolvência de uma máscara, pois corre-se o risco desta tomar a forma dos contornos do rosto e ficar muito difícil de tirar, confundindo-se com este. Sem dúvida, por mais bonita ou impressionante que seja a máscara, o interesse residirá sempre na resolução do enigma: quem se encontra e se esconde por detrás dela?

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Os filhos da utopia.

“The ancients called me Utopia or Nowhere because of my isolation.”
Escrita em 1516 Utopia de (Saint) Thomas More é uma das obras mais marcantes do humanismo europeu. Perspetivado como um lugar regido pela razão, com pluralismo e liberdades religiosas, onde a mulher tem lugar destacado e a educação é promovida para todos – a ilha de More era, sem dúvida, no século XVI um Nowhere, uma Never Land, algo idealizado e “impossível” de ser concretizado (!), embora perfeitamente aceitável nos tempos de hoje…
 
O que teria passado pela cabeça de More para desafiar os dogmas instituídos numa sociedade tão pré-determinada? Que impossibilidades inatingíveis podem pautar a ação do pensamento, catapultando-o numa visão oraculiana, constando hoje como a normalidade contemporânea?
 
Por sua vez, existem também os detratores dos cenários de algodão doce, visionando, a catástrofe, o medo e a violência como futuro, com regimes totalitários, promotores de vigílias asfixiantes e das experiências de laboratório. 1984 (George Orwell), soa-lhe familiar? Pois, os filhos da utopia desiludidos com a (atual/futura) sociedade visionam um cenário catastrófico pintado de negro, a anti-utopia, chamemos-lhe de cacotopia ou pensamento distópico.
 
Ah! Mas não estarão os filhos da utopia a prestar a maior homenagem à sua progenitora, numa espécie de relação amor-ódio, digna da poltrona freudiana? Através da sátira e da crítica procuram sensibilizar e mobilizar a humanização… mas não é este um dos ideais utópicos? Poderá ser a distopia igualmente utópica, concedendo um profundo fundamento à existência do oxímoro?
No fundo, há sempre um motivo para resistir, persistir para perpetuar o mais ínfimo raio de luz nas trevas, pois sem o outro lado da moeda, não há movimento, e só há yang se houver yin…

terça-feira, 16 de outubro de 2012

No sofá com... Sartre.

Em meados da década de 40, do mui notável século XX, Jean-Paul Sartre proferia “L’ enfer c’est les autres” (O inferno são os outros) na sua peça "No Exit/ Huis Clos", suscitando diversas análises e interpretações nos mais variados quadrantes... efetivamente o que sempre me interessou, do ponto de vista filosófico, é a liberdade e a interpretação pessoal que cada um poderá fazer. A beleza e a função terapêutica da poesia, filosofia, da arte, das narrativas, não consistem na análise aritmética da perspetiva do autor, mas do recetor, daquele que vê, perceciona, interpreta e a vive de acordo com a sua história.
 
De facto, a forma como vemos o mundo influencia o nosso pensamento: se usarmos óculos de sol com lentes muito escuras, protegemo-nos dos raios ultravioleta, no entanto, retiramos muita luminosidade à imagem; porém se os trocarmos por lentes mais claras, poder-se-á ver com maior profundidade, mas com isso acrescerá maior sensibilidade à luz.
 
Dito isto, se usar sempre os mesmos óculos em diferentes estados de tempo, poderá acentuar escabrosas tempestades e/ou criar um fantástico pôr-do-sol ao início de uma tarde…
 
Muitas análises foram feitas a este “polémico” dito sartreano, porém se pensarmos que os outros, às vezes somos nós, e nós somos, por vezes, o espelho dos outros… será que “o inferno somos nós?”

terça-feira, 9 de outubro de 2012

O sonho comanda a vida

Da poltrona freudiana às mais recentes pesquisas, a necessidade de sonhar é mais do que uma evidência. Sonhar é preciso, na consolidação da memória, no reforço do sistema imunológico; sem sonhos morreríamos e quem o diz é a ciência. Ao privar-se um organismo de sono REM (Rapid Eye Movement – fase onde ocorrem, maioritariamente, os sonhos) este entrará em colapso e morrerá.

Porém, a produção de conteúdos simbólicos e/ou latentes (sim, falo da manifestação do inconsciente que revela aquela outra parte nós, por vezes, bem escondida nas profundezas do oceano) continua a ser alvo de análise e de interesse, pois a sua função continua a ser tema de debate.

Precisamos de sonhar, sim. Mas qual a sua função na nossa vida?

Além dos sonhos derivados do sistema neurofisiológico, existem outros, derivados da simples teimosia de projetar, de ir mais além, de (ante)ver, imaginar e viver mais intensamente…

Não falo da mera capacidade de sonhar, mas sobretudo de ser sonhador. Refiro-me aquela terrível característica daqueles que não receiam em abandonar a sua zona de conforto, de correr riscos, de continuar quando todos aconselham a desistir, dos que fazem da sua vida uma constante caminhada apesar do percurso ser acidentado.

Sonhar é preciso, quem o diz é a ciência. Se nos privarmos de sonhos durante um período prolongado, o nosso organismo poderá entrar em colapso e morrer. Talvez seja por isso que alguém, brilhantemente, disse um dia: o sonho comanda a vida.

 Pedra filosofal
Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.
 
Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.
 
Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.
 
Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.
 
                 (António Gedeão).

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Anormalmente normal.

Assisti há dias a um interessante debate acerca de duas "dimensões", cuja fronteira pode suscitar, ainda, muita ambiguidade - a eterna questão orthos vs pathos.
Estará a sociedade a produzir indivíduos com fobia à especificidade, e cujo primordial desejo é ser única e absolutamente normal, como os outros? Longe dos desvios padrão, bem aconchegados no conforto da curva de Galton…
 
Porém, a questão não reside na normalidade, mas no seu caráter totalista e absoluto. Vejamos, a sociedade é composta por  indivíduos com diferentes características, capacidades, competências, limitações e perturbações, falamos de pessoas e não de robots.
 
De facto, não resisto em referir um pathos da sociedade contemporânea: ser-se anormalmente normal. A normopatia (conceito introduzido pela psicanalista Joyce McDougall) é gerada por processos e mecanismos de defesa contra a desorganização e anomalias psíquicas.
Bem adaptados, contrastando com as classificações antagónicas clássicas de neurose e psicose, os normopatas apresentam uma enorme dificuldade em imergir no seu mundo interno. Christopher Bollas denomina-os como pessoas demasiadamente normais, estáveis, sociáveis, centrados unicamente na realidade exterior, funcionando como uma resposta “eco” de imitação, uma sombra da objetividade que aniquila a subjetividade interior…
 
Com o fervilhar da sociedade, novas exigências vão sendo requeridas como modelo de sucesso: altos, magros, esbeltos, inteligentes, de uma segurança implacável, tranquilos, assertivos (…) normais, mas… onde reside a diferença e a deliciosa idiossincrasia que nos distingue e, ao mesmo tempo, nos une profundamente?